sábado, 11 de setembro de 2010

ESTUDANDO, INTERAGINDO E OBSERVANDO COM MINÚNCIA - VIDAS SECAS.

VIDAS SECAS

DE GRACILIANO RAMOS

Escrito por: RAIMAR SANTOS DA CONCEIÇÃO LEITE.


Fabiano, vaqueiro, homem rústico e analfabeto, trabalhador, gosta de muito beber e jogo, perde dinheiro nesse vício. Sinhá Vitória, mulher resignada e fiel ao marido, admira seu Tomás da bolandeira (grande roda puxada por animais que move o rodete de ralar mandioca) por saber ler e ter uma cama de lastro de couro, deseja ir a terras distantes para os filhos aprenderem o alfabeto, serem homens de leitura, terem vida melhor. O filho mais novo deseja ser vaqueiro como o pai e o admira. O filho mais velho deseja saber o sentido das palavras. Ambos gostam de brincar com a cachorra Baleia em torno da tapera. Há também um soldado amarelo, representação do poder governamental, e que prende Fabiano arbitrariamente.
Começam a jornada e suas aventuras de sequidão e fome como retirantes de um lugar inóspito, marchando léguas dentro da caatinga, na estiagem, urubus circulando na atmosfera sobre carcaças de vidas mortas ou morrendo, até encontrarem juazeiros e uma casa de fazenda que parecia abandonada. O proprietário chega e explora o trabalho de Fabiano, passam a cuidar do gado do patrão, a seca os vitima na dura realidade e voltam à estrada como retirantes.
O narrador está em terceira pessoa, heterodiegético, foco onisciente, ouve o pensar dos personagens de parca comunicação (falam em grunhidos, resmungos, para economizar energia), as suas aflições, angústias, esperança.
O romance Vidas Secas de Graciliano Ramos é composto de 13 capítulos: Mudança; Fabiano; Cadeia; Sinhá Vitória; O menino mais novo; O menino mais velho; Inverno; Festa; Baleia; Contas; O soldado amarelo; O mundo coberto de penas; Fuga.


Capitulo I – Mudança.


Estão em busca de alguma terra prometida a mais de 3 léguas (cerca de mais de 6 km). Avistam ao longe pelos galhos pelados da caatinga os juazeiros, oásis daquela família andante, nômade, em meio ao nordeste seco, em prolongada estiagem. Há vôo de urubus sobre bichos moribundos. "Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto". Eram seis viventes (Fabiano (o vaqueiro), Sinhá Vitória (sua mulher), o menino mas novo, o mais velho, a cadela Baleia, e o papagaio). A meio do caminho o papagaio morreu e foi comido. Chegaram aos juazeiros e a uma fazenda parecendo abandonada, com uma tapera. Encontraram água salobra, beberam. Baleia caçou um preá e trouxe solidária nos dentes para fartar a fome de todos ("Sinhá Vitoria beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.").



Capitulo II – Fabiano.

O vaqueiro tinha a sua crença. Supôs distinguir pisadas de uma novilha na areia. "Cruzou dois gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto, voltaria para o curral, que a oração era forte". E fumava: "Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga". "Era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. (...) - Você é um bicho, Fabiano. (...) Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades".
Na tapera "passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano (...) oferecera os seus préstimos (...) E o patrão aceitara-o (...) Agora Fabiano era vaqueiro. (...) O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. (...) só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. (...) Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco".
"Lembrou-se de seu Tomás da Bolandeira. (...) Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: - seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? (...) Não sabia mandar: pedia. (...) Os outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão (...) descompunha o vaqueiro. (...) Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual a de seu Tomás da Bolandeira".
"Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. (...) Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo (...) Estava escondido no mato como tatu (...) governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia". "Indispensável os meninos estarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus".



Capitulo III – Cadeia.

Fabiano, um homem desconfiado: "tinha ido a feira da cidade comprar mantimentos. Precisava sal, farinha, feijão e rapaduras. Sinhá Vitória pedira além disso uma garrafa de querosene e um corte de chita vermelha. Mas o querosene de seu Inácio estava misturado com água, e a chita da amostra era cara demais. Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um tostao em côvado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfiança dava-lhe gestos oblíquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no preço e na medida."

Gosta de uma boa cachaça, não com água: "dirigiu-se a bodega de seu Inácio, onde guardara os picuás. Ai certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inácio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beiços à manga, contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaça tinha água. Por que seria que seu Inácio botava água em tudo? perguntou mentalmente. Animou-se e interrogou o bodegueiro: - Por que é que vossemecê bota água em tudo? Seu Inácio fingiu nao ouvir."
O Soldado amarelo e o jogo a dinheiro; o desafio: "um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano: - Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro? Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras (...) Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. (...) os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se também. Sinhá Vitoria ia danar-se, e com razão. Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo. "Espera ai, paisano, gritou o amarelo." Fabiano, as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a seu Inácio os trocos que ele havia guardado, vestiu o gibão, passou as correias dos alforjes no ombro, ganhou a rua. (...)Que desculpa iria apresentar a Sinhá Vitoria? Forjava uma explicação difícil. (...) Os parceiros o tinham pelado no trinta-e-um. Mas não devia mencionar o jogo. (...) um empurrão, atirou-o contra o jatobá. A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminação, trepando numa escada, acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmácia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com talões de recibos debaixo do braço; a carroça de lixo rolou na praça recolhendo cascas de frutas; seu vigário saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinhá Rita louceira retirou-se. (...)Fabiano estremeceu. Chegaria a fazenda noite fechada. Entretido com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o tempo correr. E não levava o querosene (...) Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava (...) moderou a indignação. Na catinga ele às vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se.
Sentou-se num canto rosnando: "A autoridade [o soldado amarelo] (...) não achando pretexto plantou o salto em cima da alpercata do vaqueiro. (...) continuou a pisar com forca. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Ai o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá. (...) Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia. (...) uma lamina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão (...) Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando - Hum! hum!"
"Sinhá Vitória punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal não se tinha perdido. Bem. Sinhá Vitória provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente."
"deu marradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele?" (foi por um dia, cap. 8 - a festa: "Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia.")
"Agora Fabiano conseguia arranjar as idéias. O que o segurava era a família. (...) Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. (...) Sem aqueles cambões pesados [pendurados ao pescoço], não envergaria o espinhaço não, sairia dali ////como onça ////e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. (cap. 7 - Inverno: "Algum tempo antes acontecera aquela desgraça: o soldado amarelo provocara-o na feira, dera-lhe uma surra de facão e metera-o na cadeia. Fabiano passara semanas capiongo, fantasiando vinganças, vendo a criação definhar na catinga torrada. Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o delegado. Estivera uns dias assim murcho, pensando na seca e roendo a humilhação. Mas a trovoada roncara, viera a cheia, e agora as goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos das paredes. Fabiano estava contente e esfregava as mãos. Como o frio era grande, aproximou-as das labaredas.") ".



Capitulo IV – Sinhá Vitória.

Estava Sinhá Vitória "Acocorada junto às pedras que serviam de trempe, (...) soprava o fogo. (...)Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, (...) Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas Sinhá Vitória não queria saber de elogios: - Arreda! Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários."
" Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas. Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no querosene. Sinhá Vitória respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se acendiam candeeiros na casa. (...) Como não se entendessem, Sinhá Vitória aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo marido na feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas, caros e inúteis. Calcada naquilo, trôpega, mexia-se //// como um papagaio, ///// era ridícula. (...) Olhou de novo os pés espalmados. Efetivamente não se acostumava a calçar sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. (...) Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da família. (...) foi ao quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E botou os filhos para dentro de casa, que tinham barro até nas meninas dos olhos. Repreendeu-os: - Safadinhos! porcos! sujos como... Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios. (...) Fabiano roncava com segurança. Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe."